segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Genocídios acontecem, mas não há genocídio quando os alvos estão armados. Por Gelio Fregapani


No dia 24 de abril dizimou mais de um milhão de armênios desarmados. A palavra-chave da frase é justamente esta última: "desarmados". Os turcos escaparam de uma condenação mundial porque utilizaram a desculpa de tudo ter sido uma 'medida de guerra'. Findada a Primeira Guerra Mundial, eles não sofrerem nenhuma represália por este ato de genocídio. É como se o governo turco não houvesse conduzido absolutamente nenhuma medida de homicídio em massa contra um povo pacífico. Outros governos perceberam que o ardil funcionara. Era um precedente internacional conveniente demais para ser ignorado. Setenta e nove anos após o início daquele genocídio, o famoso Hotel Ruanda abriu as portas. Os Hutus também se safaram. Ironicamente, pelo menos uma década antes do massacre em Ruanda — gostaria de me lembrar da data exata —, a revista americana Harper's publicou um artigo em que profetizava com acurácia este genocídio, e por uma razão muito simples: os Hutus tinham metralhadoras; os Tutsis, não. O artigo foi escrito em um formato de parábola, sem se preocupar em fazer previsões especificamente políticas. Lembro-me vivamente de, ao ler aquele artigo, ter imediatamente pensado: "Se eu fosse um Tutsi, emigraria o mais rápido possível". O fato é que, em todo o século XX, não foi um bom negócio ser um civil. As chances sempre estavam contra você. Péssimas notícias para os civis. Tornou-se um lugar comum dizer que o século XX, mais do que qualquer outro século na história conhecida da humanidade, foi o século da desumanidade do homem para com o homem. Embora esta frase seja memorável, ela é um tanto enganosa. Para ser mais acurada, o certo seria modificá-la para "o século da desumanidade dos governos para com civis desarmados". No caso do genocídio, no entanto, tal prática não pode ser facilmente descartada como sendo um dano colateral imposto a um inimigo de guerra. Trata-se de extermínio deliberado. O século XX começou oficialmente do dia 1º de janeiro de 1901. Naquela época, uma grande guerra já estava em andamento; portanto, vamos começar por ela. Mais especificamente, era a guerra iniciada pelos EUA contra as Filipinas, cujos cidadãos haviam sido acometidos da ingênua noção de que a libertação da Espanha não implicava uma nova colonização pelos EUA. Os presidentes americanos William McKinley e Theodore Roosevelt enviaram 126.000 tropas para as Filipinas para ensinar àquele povo uma lição sobre a moderna geopolítica. Os EUA haviam comprado as Filipinas da Espanha por US$20 milhões em dezembro de 1898. O fato de que os filipinos haviam declarado independência seis meses antes dessa compra era irrelevante. Um negócio é um negócio. Aqueles que estavam sendo comprados não podiam dizer nada a respeito, muito menos protestar. Como foi dos Estados Unidos, é politicamente incorreto falar em genocídio, mas... Naquela época, era uma prática comum fazer a contagem de corpos dos combatentes inimigos. A estimativa oficial foi de 16.000 mortos. Algumas estimativas não-oficiais falam em aproximadamente 20.000. Para os civis, tanto naquela época quanto hoje, não há estimativas oficiais. O número mais baixo fala em 250.000 mortos. A estimativa mais alta é de um milhão. E então veio a Primeira Guerra Mundial e as comportas foram abertas — ou melhor, os banhos de sangue foram institucionalizados. 


Turquia, 1915 


O genocídio armênio de 1915 foi precedido por uma limpeza étnica parcial, a qual durou dois anos, 1895—97. Aproximadamente 200.000 armênios foram executados. Os armênios eram facilmente identificáveis. Alguns séculos antes, os invasores turcos otomanos os haviam forçado a acrescentar o "ian/yan" aos seus sobrenomes. Como os armênios estavam dispersos por todo o império, eles não possuíam o mesmo tipo de concentração geográfica que outros cristãos possuíam na Grécia e nos Bálcãs. Eles nunca organizaram uma força armada para oferecer resistência. E foi isso o que os levou à destruição. Eles não tinham como lutar e resistir. Os armênios eram invejados porque eram ricos e mais cultos do que a sociedade dominante. Eles eram os empreendedores do Império Otomano. O mesmo ocorreu na Rússia. O mesmo ressentimento existia na Rússia, embora não com a intensidade do ressentimento que existia na Turquia. As estimativas não-turcas falam em algo entre 800.000 e 1,5 milhão de armênios mortos. Embora a maioria destes homicídios tenha ocorrido com o uso de baixa tecnologia, os métodos eram extremamente eficazes. O exército capturava centenas ou milhares de civis, levava-os até áreas desertas e inóspitas, e os deixava lá até que literalmente morressem de fome. 


O nome Arnold Toynbee é bem conhecido. Já na década de 1950 ele era um dos mais eminentes historiadores do planeta. Seu estudo, compilado em 12 volumes (1934—61), sobre 26 civilizações não possui precedentes em sua amplitude. Sua obra O Tratamento dos Armênios no Império Otomano foi sua primeira grande publicação. Por que algumas organizações armênias não dão ampla divulgação e notoriedade a este documento é algo que me escapa completamente. O livro está em domínio público. A seção a seguir, que está na Parte VI, "As Deportações de 1915: Procedimento", é iluminadora. Leia-a com atenção. Trata-se do aspecto crucial de todo o genocídio. O governo confiscou as armas dos cidadãos. Um decreto foi expedido ordenando que todos os armênios fossem desarmados. Os armênios que serviam no exército foram retirados das fileiras combatentes, reagrupados em batalhões especiais de trabalho, e colocados para construir fortificações e estradas. O desarmamento da população civil ficou a cargo das autoridades locais. Um reino de terror foi instaurado em todos os centros administrativos. As autoridades exigiram a produção de uma quantidade estipulada de armas. Aqueles que não conseguissem cumprir as metas eram torturados, frequentemente com requintes satânicos; aqueles que, em vez de produzir, adquirissem armas para repassá-las ao governo — comprando de seus vizinhos muçulmanos ou adquirindo por qualquer outro meio —, eram aprisionados por conspiração contra o governo. Poucos desses eram jovens, pois a maioria dos jovens havia sido recrutada para servir o estado. A maioria era de homens mais velhos, homens de posse e líderes da comunidade armênia, e tornou-se claro que a inquisição das armas estava sendo utilizada como um disfarce para privar a comunidade de seus líderes naturais. Medidas similares haviam precedido os massacres de 1895—96, e um mau presságio se espalhou por todo o povo armênio. "Em uma certa noite de inverno", escreveu uma testemunha estrangeira desses eventos, "o governo enviou soldados para invadir as casas de absolutamente todos os armênios, agredindo as famílias e exigindo que todas as armas fossem entregues. Essa ação foi como um dobre de finados para vários corações". 


Desarmamento - Lênin desarmou os russos. Stalin cometeu genocídio contra os kulaks ucranianos durante a década de 1930. Pelos menos seis milhões de pessoas foram mortas. Como mostrou a organização Jews for the Preservation of Firearms Ownership (Judeus pela Preservação da Posse de Armas de Fogo), o modelo do Decreto do Controle de Armas de 1968 nos EUA — até mesmo as palavras e o fraseado — foi copiado da legislação de 1938 de Hitler, a qual, por sua vez, era uma revisão da lei de 1928 aprovada pela República de Weimar. Uma boa introdução a esta história politicamente incorreta da história do controle de armas pode ser vista aqui. Quando as tropas de Mao Tsé-Tung invadiam um vilarejo, elas capturavam os ricos. Em seguida, elas ofereciam a devolução das vítimas em troca de dinheiro. As vítimas eram libertadas quando o pagamento fosse efetuado. Mais tarde, o governo voltava a sequestrar essas mesmas pessoas, só que desta vez exigindo armas como resgate. Ato contínuo, assim que as armas eram entregues, as vítimas eram libertadas. Essa mudança de postura — exigir armas em vez de dinheiro — fez com que a negociação parecesse razoável para as famílias das próximas vítimas. Porém, tão logo o governo se apossou de todas as armas de uma comunidade, os aprisionamentos e as execuções em massa começaram. A ideia de que o indivíduo tem o direito à autodefesa era tão comum e difundida no século XVIII que ela foi escrita na Constituição americana: a segunda emenda. Carroll Quigley, eminente historiador e teórico da evolução das civilizações, era também um especialista na história do uso de armas pela população. Ele escreveu um livro de 1.000 páginas sobre o uso de armas como meio de defesa durante a Idade Média. Em sua obra Tragedy and Hope (1966), ele argumenta que a Revolução Americana foi bem sucedida porque os americanos possuíam armas de poder de fogo comparável àquelas em posse das tropas britânicas. Foi exatamente por isso, disse ele, que houve toda uma série de revoltas contra governos despóticos em todo o século XVIII. Tão logo as armas em posse do governo se tornaram superiores, os movimentos e manifestações em prol da redução do tamanho do estado deixaram de ter o mesmo êxito que haviam tido nos séculos anteriores. Há uma razão por que os governos são tão empenhados em desarmar seus cidadãos: eles querem manter seu monopólio da violência a todo custo. A ideia de haver cidadãos armados é apavorante para a maioria dos políticos. Afinal, para que serve um monopólio se ele não pode ser exercido? Cidadãos armados impõem um limite natural à tirania do estado.


Conclusão - Genocídios acontecem, mas não há genocídio quando os alvos estão armados.

Gelio Fregapani (enviada pelo Instituto Endireita Brasil).

Indústria de microeletrônica - Entrevista com Eugenio Staub

Sumário

Eugênio Staub, fundador e ex-presidente do IEDI, hoje Conselheiro do Instituto, concedeu entrevista à Carta IEDI sobre o setor eletroeletrônico. O IEDI vem realizando junto a seus Conselheiros e a especialistas uma série de entrevistas sobre os mais diversos setores da economia. Começou com o setor farmacêutico, tendo sido entrevistado seu Conselheiro, Carlos Sanches, na Carta IEDI nº 621. Nesta oportunidade, publicamos a entrevista com Eugênio Staub, grande conhecedor do setor eletroeletrônico, assim como grande conhecedor do desenvolvimento e das lacunas da indústria brasileira. 

Para ele, “aconteceu um retrocesso na indústria brasileira que foi seríssimo”. “No meu setor, que vamos chamar de TIC, houve um retrocesso brutal por causa da desmontagem da estrutura industrial. Até 1990 havia centenas de empresas, nacionais e multinacionais, na parte de insumos e componentes. Apenas como pequeno exemplo, as centrais telefônicas que a Ericsson e as demais forneciam eram aqui fabricadas, tudo com materiais nacionais. Com a evolução tecnológica, passou-se a usar um relé de estado sólido, o que causou uma desnacionalização dos insumos.”

“No setor de bens de consumo, que é o setor onde mais atua a Gradiente, nós tínhamos centenas de fornecedores nacionais que sumiram. Foram embora! Grandes empresas japonesas que estavam aqui foram embora porque o governo Collor mudou as regras da nacionalização e inviabilizou toda a infraestrutura. Com isso os produtos ficaram mais baratos, mais modernos, mas não há mais indústria de componentes nacionais para os setores de comunicação, informática e eletrônicos de consumo. Você não encontra empresa de componentes importante. Sumiram todas!”

Ainda segundo Eugênio Staub, com a desmontagem da indústria eletroeletrônica, o Brasil desperdiçou a oportunidade de trilhar novos rumos em seu desenvolvimento, rumos estes que permitiu a outros países um impulso único de crescimento:

“A indústria eletrônica se transformou numa indústria de montadoras finais baseada em incentivos da lei da informática e incentivos da Zona Franca de Manaus. Os produtos são montados no Brasil, mas o conteúdo do produto, a inteligência do produto é importada. Nós viramos uma indústria montadora. O mercado cresceu muito. Só na área de consumo são R$60 bilhões por ano. Há poucos anos atrás eram R$ 15 bilhões. O que houve foi uma desmontagem do segmento industrial substituído por uma indústria montadora final que trabalha com insumos importados. Isso é muito sério por 2 razões: 1) pelo fato em si; e 2) porque esse setor, na economia nacional e mundial, passou a ter muito mais relevância.”

Sobre as perspectivas de reversão desse quadro grave, acredita que o governo está despreparado e não vê saída a curto prazo. Todavia, adverte que o intenso progresso tecnológico do setor abre continuamente oportunidades de desenvolvimento: 

“Oportunidades existem, o mercado doméstico brasileiro, sem contar exportação é muito importante. Dá para viabilizar várias indústrias de componentes, de componente de estado sólido, circuitos integrados, semicondutores. Você pode viabilizar uma indústria dessas só com Carteiras de Identidade, cartões de crédito, Carteiras de Habilitação, tudo com chip para 200 milhões de brasileiros, mas não há política industrial nesse setor. Então o cenário é realmente muito ruim para a indústria nacional neste segmento. A grande oportunidade nesse setor é que a tecnologia evolui. Então se perde um bonde e se pode pegar outro.”

Frisa ainda que “do jeito que está hoje, nós vamos ser montadores daquilo que tiver incentivo fiscal para montar, a União está pagando com isenção de IPI, os Estados com isenção de ICMS para gerar empregos de montagem que no final trazem baixo investimento e baixo valor agregado. Portanto, eu estou pessimista com o nosso setor porque ninguém esta olhando para isso. E quando olhar, vai levar uns 10 anos para consertar. Vai haver o olhar, a disposição e vontade política de fazer alguma coisa em 10 anos? O Brasil é um país muito rico em pesquisadores e centros de pesquisas públicos e universidades, mas isso não esta sendo articulado. Está se jogando muito dinheiro fora fazendo pesquisa e desenvolvimento sem articulação e sem aplicação prática.”

Se cabe ou não uma política para o setor, é de opinião que sim: “Cabe uma nova política industrial para esse setor, inteligente, e não que onere produtos. Hoje o que acontece é que os sindicados dos trabalhadores tentam ampliar o emprego nas montadoras. É exigido no PPB, por exemplo, que o carregador do seu celular seja nacional. Assim, acaba criando um oligopólio que faz custar 4 vezes mais do que custa na China. A bateria que não é feita no país, é só montada, tem que ter elementos nacionais. Dessa forma, os telefones mais baratos não vale a pena nem montar no Brasil por causa dessas exigências. E para fazer uma coisa inteligente tem que ter uma visão e vontade política para conseguir implantar isso. Qual o mérito de fazer um carregador de tomada no país? Quase nenhum.” 

Finalmente, aponta como grande problema a “falta de uma visão estratégica para esse setor, o que não é uma coisa fácil”. “Um grupo de pessoas tem que se reunir para discutir o futuro desse setor, sem pressa para que em 2025 se comece a colher resultados. E esse segmento vai ficar mais importante ainda. Agora surgiu a telemedicina, que vai causar uma revolução na medicina, mas não há ainda um comprometimento público no País. Ela resolveria, em grande parte, o problema do atendimento médico no Brasil, já que muita coisa você pode fazer em casa. Equipamentos que hoje não são caros e que são usados para medir os parâmetros principais que podem ser enviados pela internet para o médico. Não precisa ficar na fila. Não é uma UTI, é um preventivo.
Publicado em 12/12/2014 no http://www.iedi.org.br/cartas/carta_iedi_n_654.html

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

AO EXÉRCITO NACIONAL - Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac


Não sei como poderei agradecer esta comovedora prova de afeto. Recebeis-me, como vosso, como filho da grande família militar, cuja maior nobreza deve ser sempre a glória, e cuja melhor riqueza deve ser sempre a virtude; e já esta honra me engrandece. Mas, para aumentar a minha dívida de gratidão, colocastes à frente desta manifestação os nomes de três dos mais ilustres generais do Exército; e escolhestes, como intérprete da vossa estima, e como paraninfo meu, um dos meus mais queridos amigos, um irmão bem amado, em cujo espírito e em cujo coração sempre encontrei, nos mais duros dias da minha vida, conselho e consolo, energia e repouso.

A vossa generosidade exagera o préstimo do meu nome e a importância do meu trabalho. Nada fiz, que merecesse tão alto prêmio. O que disse e fiz já estava no pensamento de todos os Brasileiros bons, e já tinha sido proclamado. A lei do sorteio militar, que sempre reputei benéfica para a necessidade da coesão nacional, está decretada há mais de sete anos; e já muitos homens de espírito clarividente e de leal patriotismo, estudando e anunciando os perigos que nos ameaçam, apontaram o remédio e a salvação.

Nada inventei, nada criei. Mostrei de novo, apenas, e com menos brilho, a fealdade da doença do tempo, a desnacionalização da nossa gente, a fraqueza dos governos, o desvanecimento do entusiasmo, a falta da coragem e da fé; e apenas procurei reacender a propaganda esquecida. Acredito que o valor da minha ação nasceu unicamente de uma prospera conjuntura do tempo e do lugar, — da ocasião feliz em que foram pronunciadas as minhas palavras. Cercavam-me corações em flor, espíritos em révora: o ambiente era propicio, de mocidade e de ternura; e a velha Faculdade de Direito de São Paulo ecoava ainda antigos clamores de crença e de combate: a minha revolta ressuscitou, entre aquelas paredes, a grandeza e a febre de campanhas mortas. Assim, o passada e o presente, num encontro milagroso, acolheram, agravaram, e repercutiram com eficácia o meu grito...

Não posso agradecer-vos. Mas posso, ao menos, dizer-vos como vos amo, e quanto me comove e orgulha o apreço que me mostrais.Sois os mesmos soldados, que sempre enobreceram o Brasil, desde a época difícil da fundação da pátria; sois o mesmo exército, que, em todas as crises graves da nossa história, até a proclamação da República, deu às boas causas a sua força material e a sua força moral, nessa longa série de altos serviços nacionais, que o vosso orador acaba de relembrar; quando vos falo, falo ao vosso presente, como ao vosso passado, e ainda ao vosso grande futuro.

Quando nasci, o Brasil vibrava, no apogeu da sua era épica, entre a batalha do Riachuelo e a batalha de Tuiuti. Findava o ano de 1865. Todas as energias do país estavam nos campos do sul. Meu pai, poucos meses antes, partira para a guerra. No lar atribulado e pobre, havia sustos e esperanças, lágrimas e sonhos: as cartas, que vinham do teatro da luta, traziam à família moralmente desamparada sorrisos e raios de fé; mas, entre as raras notícias, enlutava-se a casa, e apertavam-se os corações. Em toda a cidade, a mesma inquieta, cão, o mesmo sobressalto, a mesma alternativa de clamores de júbilo e queixas de desesperação.
Nessa pesada e angustiosa atmosfera moral, correram os primeiros quatro anos da minha vida... Depois, a minha meninice vivencia vossa glória.

As festas que coroaram a vitória, os hinos e as flores que recebiam os batalhões, a paz e a fortuna regozijando a cidade e todo o país, as fardas e as condecorações, os arcos de triunfo e os cortejos, as narrativas dos combates, o desempenho dos vencedores, o orgulho dos mutilados, o entusiasmo dos moços, o enternecimento dos velhos, o enlevo das mulheres, — todo esse espetáculo de heroísmo, dominando a vida nacional, e por muitos anos alimentando a altivez do povo, encheu e maravilhou toda a minha adolescência... Depois, já homem, vi que as vossas espadas, recusando a  sua força e o seu brilho à ganância dos mercadores de homens, e defendendo a miséria dos escravizados, apoiaram a dedicação dos abolicionistas, e apressaram a vitória da sagrada campanha...

Depois, encontrei-vos, de novo, na alvorada de 15 de Novembro, e vi toda a vossa bravura e toda a vossa beleza, irradiando, concentradas na figura legendária de Deodoro...

Foi assim que vos amo! Se alguma vez diminuiu a minha admiração, se de algum modo me afastei de vós, foi porque, com tristeza, vi alguns de vós, arredados do nobre terreno e da augusta missão em que sempre deveis honrar-vos e honrar o Brasil, preferirem ao rude e magnífico sacrifício da vida militar o fácil e grosseiro proveito do mando partidário e da pequena política das facções e das intrigas...

Mas o desfalecimento não durou muito. Quase todos os transviados já estão desiludidos e arrependidos. Na consciência de todos deve estar a convicção da inutilidade, e, mais ainda, do criminoso erro dessa dispersão de energias e de devotamentos.

Sei, — e é preciso que todo o país o saiba, — que um hálito saneador e criador percorre hoje todos os quartéis. O pensamento e a ação, o estudo e o exercício, a vontade e a disciplina, animando os oficiais, e deles emanando, inflamam e fortalecem os soldados; o trabalho! e a esperança, a confiança e o estímulo sucederam à inércia e ao desânimo; e, nesse ambiente de agitação fecunda e de reconstrução salvadora, não podem e nunca mais poderão medrar as murmurações, os despeitos, os descontentamentos, as mesquinhas rivalidades, as desmoralizadoras ambições, que só vivem bem nos arraiais do caudilhismo e da desordem.

Deste modo, querendo colaborar com todas as outras classes do nosso povo na grande empresa do revigoramento cívico, que todos devemos iniciar e executar, estais reatando o fio luminoso das tradições militares, que são o patrimônio da vossa classe...

É assim que vos amo! Se praticastes erros, também os praticamos nós, os civis. Se desses erros comuns nasceu o funesto divórcio, que separou durante tantos anos o elemento civil e o elemento militar, nasça agora da confissão e da reparação de todos os desvios e de todas as faltas um consórcio firme e perpétuo. E que este consórcio seja proclamado em palavras e em atos, desde já, enquanto não se organiza a indispensável generalização do serviço militar transformado em serviço nacional, — de modo que, como excelentemente acaba de dizer o vosso intérprete, “confraternizem todas as classes, desapareça para sempre o espantalho do militarismo, seja a nação o exército e o exército seja a nação”.

Já disse repetidas vezes que não mereço, nem quero pretender o papel e o título de apóstolo: o papel é superior ao meu "valor moral; e o título, dado a mim, traria consigo uma ironia, que a minha sinceridade repele.

Já disse também que não sou sociólogo, nem filósofo: não posso idear nem executar um programa de remodelação social. Sou, apenas, poeta, e poeta sincero e patriota.

Se posso ser professor, quero ser e serei exclusivamente professor de entusiasmo. E, dentro deste papel, não serei polemista, nem agitador de ruas, nem conquistador de popularidade. A minha humilde missão está cumprida: a mocidade do país agita-se, todas as classes despertam, os homens superiores estudam o problema, o movimento generaliza-se; posso agora sair da frente da batalha, e entro na massa da legião, casando o meu esforço obscuro aos esforços anônimos dos outros legionários.

Se apareci em evidência, foi porque havia em minha alma uma revolta, que me sufocava. Em minha consciência: acredito que o Brasil está atravessando hoje a mais grave de todas as crises de sua históriaOprime-me um grande medo. Não é o da miséria pública; porque, com trabalho e honestidade, alguns anos bastarão para remediar a devastação causada pela incúria ou pela improbidade. Não é também o da guerra, da invasão estrangeira, da perda da liberdade, da mutilação do território por sequestro ou conquista: tal perigo, se existe ou existir, será talvez o mais afastado c o mais improvável de quantos nos rodeiam; além disso, essa desgraça ainda seria uma fonte de grandes bens: porque, em falta de um perfeito patriotismo coletivo, consciente e coesivo, ao menos há no Brasil, feliz mente, a bravura própria,-o pundonor pessoal, um patriotismo individual; e a guerra, apesar de todos os seus males, seria uma ventura, porque seria uma formidável força de ligação nacional...

 O que me aterra é a possibilidade do desmembramento. Amedronta-me este espetáculo: este imenso território, povoado por mais de vinte e cinco milhões de homens, que não são continuamente ligados por intensas correntes de apoio e de acordo, pelo mesmo ideal, pela educação cívica, pela coesão militar; conflitos ridículos sobre fronteiras, dentro da integridade da pátria, explorados pela retórica,envenenados pelo fanatismo, originando guerras fratricidas, a desigualdade entre Estados irmãos, desirmanados pela diferença das fortunas e das prendas, — estes ricos e felizes, prosperando e brilhando, desenvolvendo o seu trabalho e a sua instrução, e aqueles pobres, sem ventura, sem pão, sem ordem, sem escolas, assolados pelos flagelos da natureza ou talados pelos desmandos da governação; e descontentamentos, e rivalidades, e indiferença, desamor, falta de unidade..

” Este é o meu terror. Porque sem unidade não há pátria. Quatrocentos anos de esperança e de tortura fizeram esta nação, dada à humanidade pela continuação de infinitas ações generosas: pelo esforço de um pequenino povo, — menos de dois milhões de almas, em uma estreita faixa de terra, — descobrindo, povoando, explorando, artilhando, defendendo mais de seis mil quilômetros desta costa; pelo ímpeto das bandeiras e pela bondade dos apostolados, desbravando as selvas, as águas e as almas; pelo sangue dos filhos e dos netos dos povoadores, derramado em prol do patrimônio; pelo suor e pelas lágrimas de uma raça mártir, arrancando do solo bruto a riqueza, a felicidade e o luxo; pelo heroísmo de sucessivas gerações, combatendo pela liberdade, pela integridade, pela justiça e pela glória...

É horrível pensar que esta esplendida construção de quatro séculos possa ser desmantelada pela inércia, pela ignorância, pela preguiça moral, pelo egoísmo! Mas, não!
Unamo-nos, nós, os das classes cultas, nós, os que temos instrução, pensa mento e consciência. Unamo-nos, trabalhemos, e venceremos,— e dentro do regime Republicano.

O descontentamento e o desânimo de algumas almas apela para a restauração da monarquia, como para uma panacéia de efeitos prodigiosos e instantâneos. Se o advento de um Messias pudesse agora levantar, rejuvenescer e felicitar em poucos minutos ou em poucos anos todo o Brasil, todos os patriotas, convencidos do supremo poder de tão divino condão, deveriam aceitar de braços abertos esse enviado do céu. Mas os milagres são impossíveis. O trabalho, que nos incumbe, é longo, demorado, difícil.

Não podemos transformar de súbito esta geração que está vivendo. Devemos trabalhar para o futuro: somente outras gerações, mais felizes, gozarão o bem que tivermos criado. Se os únicos remédios para a doença nacional são o tempo, a tenacidade e o devotamento, — porque não empregaremos, nós, os Republicanos, esta terapêutica ao alcance dos nossos meios? Façamos nós a ressurreição da glória do Brasil! Não a podemos fazer em poucos dias nem em poucos lustros, por um prodígio de taumaturgia social. Mas inevitavelmente a faremos, se, inspirados pela nossa crença e pelo nosso patriotismo, lavrarmos a alma do Brasil, como os agricultores lavram o seu campo: com o tempo e a paciência, com a vontade e a arte, dando toda a força do braço e a alegria do coração a todos os longos e sublimes trabalhos que o solo exige, — o derrote e o amanho, a aradura e o alqueive, a semeadura e a rega, — antes do dia nobre em que, coroando e abençoando o sacrifício, surge o esplendor da seara. O programa está assentado, e é simples e velho: a educação cívica, firmando-se na instrução primária, profissional e militar.

Mas não esqueçamos que do ensino devem ser dignos os professores. A educação cívica, devemos ser os primeiros a aprendei-a, meditá-la e praticá-la. Melhoremo-nos, antes de melhorar o povo. Procuremos inaugurar uma nova política, a verdadeira e “sã política, filha da moral e da razão”, nacional e não corriqueira, sincera e digna, condenando e abolindo os artifícios em que vivemos, fraudes eleitorais, fraquezas governamentais, paliativos econômicos e sofismas judiciários.

E não são os políticos os únicos responsáveis pelo descalabro. Quase todos erramos, pecamos, e ultrajamos a Pátria, civis e militares, políticos e homens de letras, professores e jornalistas, artistas e operários, quase todos os pais de família e cidadãos. Uns por maldade ou indiferença natural, outros por afetação ridícula ou tola jactância, outros por imitação, — quase todos desertamos o culto cívico. Esses ainda foram os menos culpados, porque se limitaram ao afastamento do templo: os piores foram aqueles, que, pregando as idéias subversivas e as palavras más, ousaram proclamar a negação da necessidade da Pátria... Eu mesmo, que vos falo, — porque é preciso que eu seja o primeiro a dizer o “confiteor”, — também me envergonho hoje da frívola e irônica literatura, que deixei pelos jornais, muitas vezes eivada do fermento anárquico.

Confessemo-nos todos, arrependamo-nos, e não perseveremos no pecado! A afronta da negação da Pátria, a injúria do desdém, e ainda a frivolidade e a ironia, e até a indiferença e a abstenção, no que se refere- à Pátria, são crimes igualmente graves. A Pátria é o grande “feitiço”, o inviolável “tabu”, que deve ser adorado cegamente, sem ser tocado.

Regeneremo-nos, e voltemos ao culto cívico. Amemos o Brasil, nós que o dirigimos. “E, aperfeiçoados, vamos ao encontro do povo, e aperfeiçoemo-lo. O povo possui energias e virtudes, mais fortes e mais puras do que as nossas: o que cumpre é estimulá-las, é extraí-las, como se extraem os metais da ganga nativa. Nós, que vivemos no litoral, e nas zonas mais acercadas do litoral, nestas cidades, em que fervem o trabalho e a ambição, os esplendores e os vícios, todas as belezas e as fealdades da civilização, não podemos suspeitar a vida que arde no âmago da terra brava.

Neste momento, um de vós, senhores, o coronel Rondon, está prosseguindo a sua longa peregrinação pelo bruto seio das brenhas, Com ele, vai um punhado de heróis obscuros. São, ao mesmo tempo, a bandeira e a missão, as sortidas do século XV e do século XVI, redivivas no século XX. Em cada um desses homens vibra um Fernão Dias e sorri um Anchieta. E, nos rudes sertões, tudo ó mistério, tudo é encantamento, tudo é espanto e riqueza. Nestas maravilhosas entradas de conquista e de catequese, cada passo é uma revelação e uma criação: o descobrimento de um rio, de uma serra, de um aldeamento de Índios; o achado imprevisto de um tesouro natural, a invenção de um recurso para a ciência ou para a indústria; a plantação de uma roça, de um poste telegráfico, de um núcleo de povoação civilizada, de um, rudimento de escola; a colheita de novas forças materiais e morais para o Brasil, — um mundo imenso que jazia em trevas...

Pois bem! A alma brasileira tem a mesma grandeza e os mesmos segredos dos sertões. Não a conhecemos, porque não nos conhecemos. Entremos por ela, empreendamos através dela a grande e deslumbradora viagem da Fé! Descobriremos vertigens e delícias, assombros e consolações, energias desconhecidas me piedades não adivinhadas. Encontraremos a cada passo uma vontade, uma vibração, um, impulso, uma resistência, uma coragem e uma dedicação. E todas estas forças estarão conosco. E, quando regressarmos da expedição magnífica, teremos criado a mais bela e a mais viva de todas as nações da terra.

Peço-vos, senhores, que vos levanteis. Com toda a alma, com toda a crença e com toda a esperança, saudemos o passado glorioso do Brasil, que resplandece em vossos uniformes; o presente sofredor do Brasil, que enche todos os nossos corações; e o futuro incomparável do Brasil, que viverá no orgulho dos nossos descendentes, — a Grande Pátria, que será forte para ser boa, armada para ser justa, e rica para ser generosa!

(discurso proferido no banquete oferecido pelo Exército, no edifício do Clube Militar em 6 de Novembro de 1915- Rio de Janeiro)